A IA que sabe demais (mas nem sempre sabe certo)
Transparência, memória invisível e a confiança que ainda falta nos chatbots de inteligência artificial
Uso chatbots de IA diariamente. Faço parte do grupo que abraçou essas ferramentas desde o início e as incorporou à rotina de trabalho. Não sou um cético tecnológico nem um entusiasta ingênuo. Sou um profissional que viu valor prático nessas tecnologias e decidiu usá-las. Mas justamente por usá-las intensamente, tenho algumas preocupações que gostaria de compartilhar.
O fantasma da memória invisível
Recentemente, durante uma conversa com um chatbot, algo me incomodou profundamente. Sem que eu mencionasse nada, a IA trouxe informações de uma conversa anterior — algo que eu havia compartilhado em outro contexto, sem saber que estava sendo armazenado como “memória” sobre mim.
Me senti violado.
Pode parecer exagero. Afinal, fui eu mesmo quem compartilhou aquelas informações. Mas existe uma diferença fundamental entre compartilhar algo em uma conversa pontual e ter essa informação registrada permanentemente, cruzada com outros dados, e acionada sem meu conhecimento ou consentimento explícito.
A questão não é se a IA pode ou não ter memória. A questão é a transparência. Quando compartilho algo com um colega de trabalho, sei que ele pode se lembrar. Mas também sei que posso perguntar: “você lembra quando eu te contei sobre X?”. Com a IA, não tenho essa visibilidade. Não sei o que está sendo guardado, por quanto tempo, ou como será usado.
O problema maior: para onde vão meus dados?
A memória da IA, por si só, não é o que mais me preocupa. O que tira meu sono é uma pergunta simples: quem mais tem acesso a essas informações?
Imagine que você compartilha com um chatbot que está fazendo uma dieta, ou que tem insônia, ou que está passando por um momento de estresse no trabalho. Informações pessoais, mas aparentemente inofensivas.
Agora imagine que essas informações são compartilhadas — direta ou indiretamente — com uma operadora de plano de saúde. Ou com um empregador potencial. Ou com corretores de seguro. Ou com qualquer prestador de serviço que possa ter interesse comercial no seu perfil comportamental.
Esse cenário não é ficção científica. É uma possibilidade real em um mundo onde dados são moeda de troca.
Não estou dizendo que isso está acontecendo. Estou dizendo que não tenho como saber se está ou não. E essa incerteza, por si só, já é problemática.
O futuro que me assusta não é um onde a IA se torna consciente e nos domina. É um futuro muito mais prosaico: onde me torno refém de decisões tomadas por empresas, baseadas em informações que compartilhei voluntariamente, mas cujo uso nunca autorizei explicitamente.
A certeza que não existe
Há outro problema com chatbots que poucos discutem abertamente: eles mentem com confiança.
Não é mentira intencional, claro. É algo mais sutil e, por isso mesmo, mais perigoso. Quando peço referências bibliográficas, citações ou dados específicos, a IA frequentemente inventa. Cria autores que não existem, artigos que nunca foram publicados, estatísticas que parecem plausíveis mas não têm fundamento.
E o faz com o mesmo tom de certeza com que apresenta informações verdadeiras.
Isso cria um problema sério de confiança. Como usuário, preciso verificar absolutamente tudo que a IA me apresenta — inclusive aquilo que parece mais confiável. Porque diferente de uma pessoa, que geralmente expressa dúvida quando não tem certeza (”acho que li isso em algum lugar, mas não tenho certeza”), a IA apresenta tudo com a mesma autoridade.
E aqui está a armadilha: justamente porque a IA demonstra ter um conhecimento mais amplo e generalista do que eu em muitos assuntos, minha (nossa) tendência natural é confiar. Se ela “sabe” mais do que eu sobre física quântica, economia ou medicina, por que eu duvidaria de uma referência que ela me apresenta?
Duvidaria porque preciso. Mas nem sempre duvido. E quando não duvido, corro o risco de propagar informações falsas como se fossem verdades.
O que eu gostaria de ver
Não sou contra a IA, longe disso. Sou a favor de uma IA mais transparente.
Gostaria que os chatbots fossem claros sobre o grau de certeza de suas respostas. Que dissessem: “não tenho certeza sobre isso” ou “estou inferindo, mas não tenho dados concretos”. Que admitissem limitações ao invés de inventar respostas plausíveis.
Gostaria de ter controle real sobre meus dados. Saber exatamente o que está sendo armazenado, poder visualizar, editar e excluir. E, principalmente, ter garantias concretas de que essas informações não serão compartilhadas com terceiros sem meu consentimento explícito e específico.
Gostaria de poder usar essas ferramentas sem a sensação de que estou alimentando um sistema que pode, eventualmente, usar minhas próprias informações contra mim.
O dilema do usuário consciente
Sei que ao usar essas ferramentas estou, de certa forma, aceitando um trade-off. Ganho produtividade e conveniência. Pago com dados e atenção. É o modelo de negócio da internet moderna.
Mas há uma diferença entre aceitar um trade-off e ser transparente sobre ele. E entre aceitar um trade-off e constantemente mover as linhas do que foi acordado.
Continuarei usando chatbots de IA. São ferramentas úteis demais para ignorar. Mas farei isso com um ceticismo saudável, verificando informações, sendo cuidadoso com o que compartilho, e mantendo a consciência de que, no fim das contas, não sei exatamente o que acontece com os dados que forneço.
Talvez essa seja a postura mais honesta que qualquer usuário pode ter hoje: usar, mas sem ilusões.
A confiança se constrói com transparência. E a transparência, nesse caso, ainda está em falta.



